O trecho de John Milton (1608-1674) que apresentamos aqui separa o joio do trigo, os bons dos maus, segundo um critério que quase todos acharão odioso.
O fato de a maioria ser do grupo dos maus explica não apenas as ditaduras, mas a corrupção, a injustiça crônica. Explica por que uma mulher jovem brasileira, 30 anos, mãe de uma criança de um ano, ou dois, está presa, incomunicável, pagando por um crime que não cometeu, enquanto policiais que se vendem como executores estão impunes, às voltas com o negócio, como de costume.
O escrito é difícil para a maioria, o que me leva a "traduzi-lo". Milton argumenta que liberdade é coisa só para os bons. Os maus não se opõem aos tiranos. Estes dirigem "todo o seu ódio e suspeita" contra os bons, que seguem a "virtude e o verdadeiro valor".
Os maus desistem da razão, da compreensão, em favor de duas coisas: (1) do costume externo, ou seja, do que é o habitualmente aceito, do estabelecido ("as coisas são assim e pronto") e (2) dos cegos afetos internos, que têm também enorme peso nessa generalizada sujeição ao mal.
Tais afetos cegos, por exemplo, levam os maus a rejeitarem os bons que os criticam, ainda que o façam com toda a razão (ra-zão de que os maus desistiram...) e com a intenção de ajudar os maus a se libertarem.
Tais afetos cegos, por exemplo, levam os maus a rejeitarem os bons que os criticam, ainda que o façam com toda a razão (ra-zão de que os maus desistiram...) e com a intenção de ajudar os maus a se libertarem.
Os maus fazem amizade com os tiranos, os que matam. E chamam isso de outras coisas, como fé - no caso da Igreja -, ou chamam de lealdade, de obediência. Ou, ainda, de juízo: "Manda quem pode, obedece quem tem juízo". Isso só cabe na boca de um mau sujeito.
Não se conforma você com a classificação de "mau"? Ora, quem apoia o poder que mata não é mau? É o quê? É também cego, certamente. Um cego ardiloso, cheio dos esquemas para tapar o sol com um discurso-peneira, repleto de furinhos, de incoerência. Isso, para os maus, é a "palavra de Deus".
E quanto mais cheio de furinhos for o discurso, melhor o tomam, chamando os furinhos de outra coisa: de mistérios.
Não se conforma você com a classificação de "mau"? Ora, quem apoia o poder que mata não é mau? É o quê? É também cego, certamente. Um cego ardiloso, cheio dos esquemas para tapar o sol com um discurso-peneira, repleto de furinhos, de incoerência. Isso, para os maus, é a "palavra de Deus".
E quanto mais cheio de furinhos for o discurso, melhor o tomam, chamando os furinhos de outra coisa: de mistérios.
Agora, as palavras de Milton:
Se dentro de si as pessoas desejassem se governar pela razão e dela não abrissem mão - como em geral o fazem - em troca de uma dupla tirania, a do costume externo e a dos cegos afetos internos, elas entenderiam melhor o que implica favorecer e amparar o tirano de uma nação. Mas, como sejam escravos portas adentro, não admira se empenharem tanto em fazer o estado público se governar de acordo com a viciosa regra interior, mediante a qual governam a si mesmos. Na verdade, só as pessoas boas podem amar vigorosamente a liberdade; as demais amam não a liberdade, mas a permissão [que as autoridades concede]; que sempre teve mais amplitude e indulgência nas tiranias. Dos maus, os tiranos raras vezes esperam agressão ou mesmo deles suspeitam, já que são naturalmente servis. Por outro lado, para quem a virtude e o verdadeiro valor é o mais importante, destes têm [as autoridades] um temor profundo e, sendo por direito [tão somente por direito, ou seja, por via institucional] senhores deles, contra eles voltam todo o seu ódio e suspeita. É por isso que os maus não odeiam os tiranos, mas estão sempre prontos a colorir, com alegações falsas de "lealdade" e "obediência" [inclusive a Deus], suas torpes condescendências aos tiranos [a aprovação a coisas terríveis, como a Inquisição, é um exemplo].
John Milton, Escritos Políticos, p. 5-6, minha adaptação da tradução de Political Writings, publicada pela Martins Fontes.
Texto original, pela Cambridge University Press, p. 3:
If men within themselves would be govern'd [governed] by reason, and not generally give up their understanding to a double tyrannie [tyranny], of Custom from without, and blind affections within, they would discern better, what it is to favour and uphold the Tyrant of a Nation. But being slaves within doors, no wonder that they strive so much to have the public State comformably govern'd to the inward vicious rule, by which they govern themselves. For indeed none can love freedom heartilie [heartedly], but good men; the rest love not freedom, but licence; which never hath [had] more scope or more indulgence then under Tyrants. Hence is it that Tyrants are not oft offended, nor stand much in doubt of bad men, as being all natually servile; but in whom virtue and truth worth most is eminent, then they fear in earnest, as by right their Masters, against them lies all their hatred and suspicion. Consequentlie [Consequently], neither do bad men hate Tyrants, but have been always readiest with the falsifi'd names of Loyalty, and Obedience, to colour over their base compliances...