SONETO DE WILFRED OWEN a tradução - e interpretação - que 'se parece com o autor'


Apontamos por que a tradução que saiu, domingo (20.7), na Folha de S.Paulo é ruim. Apresentamos outra tradução, inédita, e juntamos o original - para o leitor comparar,  aprender e se deliciar.


Elogiável a publicação do soneto de Wilfred Owen no caderno Ilustríssima de domingo passado (20.07), enriquecendo o conteúdo principal, sobre a IGG (Primeira Grande Guerra).
 
Incluir tradução para nossa língua também merece aplausos. Contudo, a tradução em si foi decepcionante.
 
O tradutor, está evidente, se esforçou para compor rimas, mas estas não podem ser imperiosas a ponto de justificar o sério abalo da obra original em suas demais características. A simplicidade e tom amplamente tocante do soneto de Owen acabaram seriamente prejudicados.

Ainda que um 'thou' logo na primeira linha remeta para a forma antiga do inglês, concluir precipitadamente que os versos são arcaicos e indecifráveis - até para a maioria dos leitores daquele caderno cult - é um equívoco. Outras formas arcaicas, variantes da anterior, surgem: thy, thee. De novo, não é isso que deve embotar a avaliação do soneto que - em tudo o mais - apresenta termos simples.
 
As adaptações que o tradutor empreende só podem ser aceitáveis se o resultado for belo como o original, a tradução refletindo aquele no impacto, sentimento, alcance. 

A última linha da tradução ostenta uma alteração de sujeito, o que configura falha elementar, dado que não aponta para uma troca por algo decisivamente salutar ao texto traduzido. No original, é 'God' tanto o sujeito de 'curse' quanto de 'cut'; o tradutor transfere o 'cut' para a própria Arma, o que subtrai vigor do texto.
 
Na escolha de palavras difíceis, o tradutor feriu o soneto de morte, e a audiência boiou - não deu para entender. 'Troante esconjuro' para traduzir 'huge imprecations' termos simples em inglês, ilustra cabalmente esse meu ponto, que encontra repetidamente respaldo ao longo de toda a tradução.

Além disso, há interpretações difíceis a fazer. 'Artillery' pode se referir às armas ou aos soldados.
Há uma 'Great Gun', que pode ser confundida com o 'black arm'. Mas, justamente nisso está grande parte da engenhosidade dos versos, percebida, por muitos, como obstáculo ao entendimento.
 
Ao interpretar que a artilharia é uma arma em uso do lado do combate em que o autor estáo tradutor impõe
várias outras perdas ao texto original, que procura disfarçar
com um vocabulário pesado como a Grande Arma.

A crítica ao soneto encontrada no site The Wilfred Owen Association também adota tal interpretação mas, por fim, acaba reconhecendo sua perplexidade diante do resultado e indaga: 'But there's one thing wrong. It does not sound like Owen, does it?' [Mas há algo errado. O soneto não soa como de Owen, soa?]

O que toca o autor não é a ação da Grande Arma, mas o que esta faz com o pelotão escuro, parte da Artilharia (soldados). O pelotão escuro é dizimado; o autor, que faz parte da Artilharia, vê, portanto, seus companheiros massacrados pela Grande Arma, que não é apenas um artefato, mas o Inimigo.
O autor, a obra, o contundente background, bem como os fartamente castigados leitores de português merecem o 'esconjuro' só se vier no devido modo, tempo e lugar.
 
Ao tomar o choque do 'bulhufas' como simples leitora, eu não parti de pronto para a análise crítica, mas busquei outra tradução - e eu mesma retraduzi o soneto. A interpretação diferente que eu adoto (descrita no parágrafo acima do imediatamente anterior) produz, já no título, diferenças em relação à tradução publicada no Ilustríssima.
Vejamos:


Ao ver um pelotão de nossa artilharia pesada em ação
 
tradução de Mariangela Pedro do original de Wilfred Owen
 
Ganha lentamente projeção, longo pelotão no escuro,
Grande Arma espichando ao Céu, afoita por insultar;
Cadencia altiva, contra eles está anos a fio a ensaiar
Graves ofensas a passarem por estonteante apuro!
Chega à Arrogância, inseparável de teu dizimar,
E os elimina, antes que se graduem em um pecado mais maduro.
Aproveita nosso ressentimento, canhão em ação, - para dissipar
Sim, no temporal, nosso vigor e, moldado em labaredas, nosso ouro.
 
Contudo, em consideração àqueles fadados
por tua maligna carga a sucumbir sem reação,
Não haveremos de, trágico pelotão, em meio à destruição,
Recuar em segurança aos nossos ninhos abastados.
De fato queremos, quando tal maldição absoluta for,
Que Deus dela cuide, e livre nossa alma desse horror!
 

Notas adicionais da tradutora:
1) observem as rimas. O tradutor aqui é necessariamente poeta; tem de criar novo soneto, novas rimas. Nada fácil. Para isso, é impossível se ater a uma tradução 'ponto a ponto'. É fundamental recriar e ao mesmo tempo preservar o sentido, o tom, a emoção.
2) Conseguimos preservar o 'espírito' da coisa, sem ter de desencavar palavras esdrúxulas, e oferecendo riqueza de vocabulário.
3) o pelotão 'no escuro' (1a. linha) é coerente com a figura da Grande Arma, que lança uma grande sombra sobre o pelotão, tanto literal, quanto figurativamente.
4) a diferença em relação à tradução publicada na Folha é brutal. Para comparar com mais afinco, não deixe de ler a crítica que precede minha tradução. Além de muito mais bonito, meu texto é também um produto coeso, fiel a uma interpretação diferente das existentes, mas mais robusta e afinada com toda a obra restante de Owen.

Comparando com a tradução de Nelson Ascher:

Já iniciamos esta postagem com uma crítica à tradução publicada na Folha, domingo. Não deixe de lê-la. Aqui, fazemos apenas uma síntese, que é seguida pela íntegra daquela tradução, bem como pelo original do finado poeta britânico.

A tradução publicada em Ilustríssima deixa 'coisas de fora', não oferece um sentido coeso; sequer dá para entender um pedacinho que seja, já que abusa de palavras estrepitosamente difíceis, talvez para dar ao leitor a impressão de que o tradutor entendeu o soneto, e o leitor é que é 'deficiente'. Faz adaptações que roubam em vez de louvar o original. As muitas falhas da tradução, enfim, expõem uma distância colossal do original, sobretudo quanto à interpretação geral.

Esta é a tradução que consta da Ilustríssima:

Ao Ver uma Peça de Nossa Artilharia Pesada Posta em Ação (por Neson Arscher)
Armem-te aos poucos, longo braço preto,
Grande arma arranha-céu pronta a imprecar;
Mira-os sem trégua, em riste, e lança, feito
Troante esconjuro, maldições sem par.
A empáfia que requer tua ação brutal,
Esmaga antes que agrida mais. Derrama,
Canhão, nosso ódio; e esbanja em temporal
Nosso alento, nosso ouro como chama.

Mas pelo bem daqueles, aço aziago,
Que, nada hostis, tua praga há de prostrar,
Não te recolham, findo o teu estrago,
A salvo à paz de nosso bem-estar.
Feito e enfim posto o teu feitiço -adeus:
Deixa a nossa alma, e amaldiçoe-te Deus!

O original:

On Seeing a Piece of our Heavy Artillery Brought into Action

Wilfred Owen

Be slowly lifted up, thou long black arm,
Great Gun towering towards Heaven, about to curse;
Sway steep against them, and for years rehearse
Huge imprecations like a blasting charm!
Reach at that Arrogance which needs thy harm,
And beat it down before its sins grow worse.
Spend our resentment, cannon, -yea, disburse
Our gold in shapes of flame, our breaths in storm.


Yet, for men's sakes whom thy vast malison
Must wither innocent of enmity,
Be not withdrawn, dark arm, the spoilure done,
Safe to the bosom of our prosperity.
But when thy spell be cast complete and whole,
May God curse thee, and cut thee from our soul!